sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

CAMA DE PROCUSTO

Leia com atenção o trecho abaixo. Depois eu digo de onde eu o tirei e aonde quero chegar.

“- Mentira! Vou te mostrar os livros; segundo eles, todos os crimes se devem ao ambiente insalubre, e nada mais. Frase magnífica! De onde se deduz que, se a sociedade estivesse normalmente constituída, então acabariam todos os crimes, visto que já não haveria contra o que protestar e todos passariam instantaneamente a ser inocentes.

E a natureza? Não a levam em consideração. Puseram-na no olho da rua. Não toleram a natureza. Para eles não é a natureza que, desenvolvendo-se de um modo histórico, vivo, até o fim, acabará por se transformar ela mesma numa sociedade normal, mas, pelo contrário, será o sistema social que, brotando de alguma cabeça matemática, procederá em seguida a estruturar toda a humanidade e, num abrir e fechar de olhos, a tornará justa e inocente, mais depressa do que processo vivo, sem seguir nenhum caminho histórico e natural. Por isso, eles sentem instintivamente aversão pela história... Por isso, também, eles não amam o processo vital da vida, não querem nada com a alma viva. A alma viva da vida tem exigências, a alma viva não obedece mecanicamente, a alma viva é suspeita, a alma viva é retrógada. E eles não podem construir nada com alma de borracha... que não será viva nem terá vontade, será uma escrava e não se revoltará...

É simplesmente impossível saltar com a lógica por cima da natureza. A lógica pressupõe três casos, mas há milhões deles. Pois façam tábua rasa desses milhões e reduzam tudo ao simples problema do conforto! Essa será a solução mais fácil do enigma. Ela é de uma clareza sedutora e, sobretudo, evita o incômodo de pensar. Porque o essencial é isso: não ter que pensar. Todos os mistérios da vida podem ser compreendidos em duas folhas de papel impresso. O meio significa muito na criminalidade, isso eu afirmo. Mas um quarentão desonra uma menina de dez anos. Foi o meio que o induziu a isso?”


Parece coisa nova. Mas não é, não, viu! Ficha completa: Dostoiévski, em “Crime e Castigo”, de 1866. Parece coisa nova, mas não é.

Naquela época, discutia-se muito a fundamentação dos delitos e, afinal, das motivações da alma humana. Como as teses socialistas estavam em voga, tudo se reduzia ao “meio”. Mas se um quarentão desonra uma menina de dez anos, foi o meio que o induziu a isso? – pergunta o autor através do personagem.

Lá, o meio. Aqui, o gene. Lá, o lado (de fora) de fora. Aqui, o lado (de fora) de dentro. Mas sempre o lado de fora.

Curiosamente, eu estava lendo justo essa página de Dostoiévski, enquanto a Mônica Waldvogel entrevistava um par psiquiatra-psicóloga que não deixava em nada a desejar daquilo que André Green chamou de “abordagem veterinária” das questões humanas. Coisa que, aliás, os veterinários abominarão se ouvirem. Porque, eles, ao que tudo indica, e ao contrário, humanizaram o atendimento à sua distinta clientela. Já, em outros campos da atividade humana, infelizmente, o atendimento foi robotizado.

Sério!

Acabei de ligar para uma igreja afim de “marcar missa”. Fui atendido por uma máquina que informou os horários e sutilmente me informou que eu estava fora do “horário comercial”. “Para pagar o dízimo, tecle 1; para saber o horário de atendimento, tecle 2...” Caramba!, pensei. A coisa virou comércio, mesmo! Daqui a pouco, vai virar indústria. “Para encomendar água benta, tecle 1...” Não tardará, e ouvirei: “Em caso de angústia, não se suicide: espere até terça-feira, porque na segunda estamos de folga!”

Sério!

Dia desses, custei a agendar o médico. Fui... atendido por um programa de computador. Ele, mesmo, não olhou para mim. Sabia tudo do programa e o programa sabia tudo de mim. Ele, mesmo, o fulano humano, apenas resmungava quando a máquina não respondia. Na outra encarnação – jurei! – voltar bicho, de preferência, canino da Dra. Jackline ou felino da Dra. Eliana. “Vem cá com a mamãe!” Não é muito melhor ouvir isso do que ser atendido por uma máquina e tratado por outra?

“A alma viva da vida tem exigências, a alma viva não obedece mecanicamente, a alma viva é suspeita, a alma viva é retrógada. E eles não podem construir nada com alma de borracha...”

Dostoiévski! Século XIX!

Ta certo. Evoluímos bastante quando instalamos um computador com multi-qualquer-coisa em cada quarto. E mais um punhado de engenhocas multi-facilitadoras-não-se-sabe-bem-pra-quê acopladas a todos os botões multi-facilitadores... (Pula!) Evoluímos quando criamos leis de proteção aos animais. Evoluímos quando já podemos encher a geladeira com mais coisas do que antes. Evoluímos. Evoluímos.

E ainda fazemos guerra. Mentimos. Enganamos. Espoliamos... A lista não tem fim.

Mas, sobretudo, será mesmo que evoluímos ao perder de vista a sofisticação da alma humana ao coisificar os sentimentos? Certas abordagens fazem-me sentir uma ameba impulsionada por estímulos eletros-químico. Vou acabar tendo inveja do cachorro do vizinho!

A maioria conhece Procusto. Segundo uma lenda grega, ele era um bandido que oferecia hospitalidade aos viajantes perdidos. Ele os deitava numa cama de ferro e, quem fosse mais longo do que a cama, ele cortava o que sobrava; quem fosse mais curto, ele esticava até ficarem do tamanho da cama. Procusto era um normalizador. Sempre senti vontade de fazer dele o patrono daqueles que aplicam testes, contam com algum tipo de reeducação ou reduzem o insaciável desejo humano a um corriqueiro e banal “sonho de consumo” normativo.

Não seria a tal razão da vida algo a ser situado num horizonte mais além? Não será a razão de uma pessoa descobrir-se para tornar-se – não conforme a norma, a moda, a etiqueta ou a bula – simplesmente, aquilo que é?

Um comentário:

  1. Renato num momento como esse em minha vida!!! Ler um texto, como esse que acabei de ler, alegre, brilhante, sábio. Que sai da mesmice que ouvimos, lemos e vemos a todo instante... A nos dizer que tecnológicamente evoluimos muito e, moralmente muito pouco. Só posso agradecer. Muito obrigada por ter me apresentado o blog. Nada nessa vida é por acaso...

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